Por Jorge Alexandre Alves
Durante as décadas de 1960, 1970 e 1980, a Igreja construiu um patrimônio social admirável. Historicamente ligado às classes dominantes – de forma significativa no Brasil – o catolicismo se tornara protagonista das experiências mais proféticas de suporte às causas populares no país.
A história daquele período e a biografia daqueles que marcaram época são definitivos em mostrar a virada do catolicismo. A capacidade de enfrentamento à opressão fizera da Igreja a “voz dos sem voz” durante boa parte da ditadura brasileira.
A força católica naqueles tempos difíceis se baseou no testemunho de vida de leigos/leigas, religiosas/religiosos, padres e bispos que, com coragem, ousadia e determinação, não vacilaram nenhum minuto na denúncia do autoritarismo, das violações dos Direitos Humanos e na defesa inegociável dos mais pobres.
Todos sabiam que as velhas estruturas tridentinas já não mais serviam aos desafios que se impunham naquele momento. Vale dizer que o que aconteceu no Brasil se reproduziu por toda América Latina nestes tempos.
Por toda a parte se viu surgir, à imagem e semelhança do que se passava aqui, uma geração de valorosos cristãos e cristãs comprometidas com um “Novo Jeito de ser Igreja”. Isso tudo fundamentou uma nova forma de fazer teologia, centrada na Libertação do povo, desde o seu princípio com forte marca ecumênica.
Era, na visão de Leonardo Boff, a Eclesiogênese, a Igreja que nasce do povo. O velho modelo da grande paróquia católica foi se transformando em outra forma de organizar a ação eclesial, descentralizada e participativa.
Naquele contexto, somente fazia sentido uma Evangelização que se desse na perspectiva dos oprimidos desta terra. Nela, não cabia firulas litúrgicas nem a ostentação dos símbolos do poder religioso sacerdotal.
Para tanto foram decisivos três fatores: O Concílio Vaticano II e as conferências do episcopado da América Latina, que atualizaram para nossa realidade as orientações conciliares. Uma geração de bispos sensíveis às dores do Povo de Deus, e grande capilaridade social, que tornava a Igreja presente nos mais remotos lugares.
Os ventos do concílio dinamizaram (não sem crise) a ação eclesial. Até a formação do clero se modificou em várias dioceses e congregações religiosas, dentro do espírito de Aggiornamento proposto por João XXIII.
No Brasil em especial, o que se produziu com a contribuição da Igreja foi o maior mutirão de educação popular da história deste país, formando enorme quantidade de quadros para os movimentos sociais, a sociedade civil e o mundo da política.
Soma-se a isso a capacidade de dialogar com outros setores da sociedade civil, a abertura ecumênica e as metodologias desenvolvidas por Paulo Freire. Não foi à toa que se refundou o movimento estudantil, os sindicatos se reorganizaram e mais à frente surgiram entidades importantíssimas como a CUT e o MST.
A então nova experiência das valentes Comunidades Eclesiais de Base (CEBs) foi decisiva na formação de um partido que se propunha ser dos trabalhadores. A movimentação social e política daqueles tempos teve a participação de cristãos, dando sua contribuição para enfrentar a ditadura e restaurar a democracia no país.
E do ponto de vista religioso, ainda tivemos a constituição do Conselho Indígena Missionário, da Comissão Pastoral da Terra, das Pastorais Sociais e, perto de completar 50 anos, a Pastoral da Juventude. Para além disso, avançou-se no Diálogo Interreligioso e criou-se um conselho ecumênico de confissões cristãs.
Popularizou-se a leitura da Bíblia através do Centro Ecumênico de Estudos Bíblicos. A liturgia procurou se inculturar às realidades do povo, se desenvolveu o Ofício Divino das Comunidades. Enfim, aqueles anos foram extremamente duros, mas intensamente ricos.
A Igreja construiu um legado profundo, que deixou marcas indeléveis na sociedade brasileira. Hoje somos herdeiros e tributários desta herança eclesial. Entretanto, nem tudo foram flores. Os agentes da ordem e os donos do Poder não se conformaram com a atuação profética destes segmentos da Igreja. Tentaram calar suas vozes.
Tentaram matar suas lideranças, perseguir seus Pastores. Aqui e em toda a Pátria Grande latinoamericana. Muitos abraçaram o martírio em nome de sua fé, na defesa dos mais oprimidos, em fidelidade ao Reino de Deus.
Muitos se incomodaram dentro da Igreja, não aceitavam perder seus palácios e seus privilégios de poder. Ainda teve quem defendesse o retorno à cristandade medieval-tridentina em pleno Século XX.
Não faltaram incompreensões, bispos foram caluniados, leigos e leigas perseguidas. Ao mesmo tempo, de Roma veio uma implacável perseguição a todo este patrimônio eclesial, que foi sendo lentamente desmontado. Um contínuo processo de silenciamento se deu contra este legado, a ponto do termo “CEBs” sequer aparecer em documentos oficiais da Igreja atualmente.
Tragicamente, isso ocorre na mesma época em que as periferias urbanas se agigantam. Naquele momento, pouco se compreendia o valor da piedade popular e a experiência fecunda das décadas anteriores foi se diluindo.
A Teologia da Libertação não desapareceu, até porque aqui estamos nós. Mas toda a vivência ligada a ela foi sendo posta de lado, escanteadas nas estruturas eclesiais.
Esse novo caldo de cultura católica gerou um vácuo nas periferias urbanas. Isto permitiu a expansão de segmentos cristãos que, embora próximos aos pobres, suas lideranças agiam como verdadeiros coronéis da fé.
E o catolicismo fez opção por uma ação baseada em eventos de massas, com sua própria versão de pentecostalismo, somado ao ressurgimento do tradicionalismo. Isso não apenas não trouxe de volta o rebanho católico que se dispersou em outras confissões cristãs, como gerou um grande mal: o fundamentalismo religioso.
Vivemos atualmente os efeitos dessas transformações do campo católico e os seus impactos no Brasil de nossos dias. Se houve uma derrota eclesial por um lado; por outro, não conseguiram fazer desaparecer o belíssimo patrimônio eclesial que tanto contribuiu para a sociedade.
A chegada de Francisco a Roma resgatou aquilo que estava desprezado na Igreja. Não sem resistências nem perseguições. O caminho do Reino sempre foi espinhoso.
Somos herdeiros desse legado. Filhos e filhas da Teologia da Libertação, das CEBs, da PJ e das Pastorais Sociais. Neste momento decisivo da história do Brasil, somos chamados a dar a grande contribuição de nossa geração.
Estamos diante da perpetuação da barbárie. E por isso, talvez seja a última chance desta geração para fazer valer a democracia. Nossa causa maior não é uma qualquer. Somos seguidores de um preso político assassinado pelas mãos do Estado.
Sobre nós está a grande responsabilidade de nossas vidas neste país em que tantos e tantas imolaram sua vida em nome do Reino. Caminhamos pela terra regada com o sangue oferecido em nome do Evangelho por aqueles que nos precederam.
A dureza de nossos dias não é pior que outros tempos. Por isso não podemos nos omitir. Somos seguidores de Jesus de Nazaré.
Ele caminha conosco, soldados derrotados de uma causa invencível, como dizia Pedro Casaldáliga. Por isso, não há alternativa para salvar este país do ódio. É hora de Encantar a Política.