A compreensão teológica do “demônio” é uma das que mais incorrem em equívocos no cristianismo em nossos dias. E talvez uma das razões mais fortes seja o fato dele causar muito medo para a maioria das pessoas que transitam no universo religioso.
Neste momento de “crise civilizatória” a justificativa de acusações baseadas no “dito cujo”, quando ao final do século passado pensávamos que ele estava em baixa, tem retornado com força. Certamente o medo causado pelas incertezas da crise fez crescer este retorno.
O mais incrível é que a crença no “cramunhão” é forte justamente na fé que deveria ter muita convicção sobre a presença do mal no mundo e a resposta de Deus, ou seja, o cristianismo. Como depois de Jesus Cristo, que venceu o mal pelo amor, pessoas continuam dar tanta credibilidade a uma figura que, se existe da forma como é predominantemente é descrito, certamente tem menos poder que Deus.
Embora existam cenas da relação entre Jesus e o “diabo” nos Evangelhos, em momento algum se pode verificar qualquer centralidade de sua presença no caminho revelado pelo Cristo. As interpretações jogam peso em uma teologia do medo e não do amor. Assim, fica mais fácil manter populações inteiras sob o domínio daqueles que, verdadeiramente, produzem dor e sofrimento.
O escritor moçambicano Mia Couto tem uma pequena palestra proferida em 2011, pode-se verificar no youtube (veja aqui), que pontua bem o papel de incutir medo nas pessoas: “Há quem tenha medo que o medo acabe”. Anjos e demônios perderam muitas vezes o seu papel na história como referência simbólica da dualidade presente na condição humana. Uma amiga teóloga, Lúcia Pedrosa de Pádua, escreveu um capítulo em uma obra conjunta (Espiritualidade cristã em tempos de mudança, A. G. Rubio e Joel P. Amado, orgs), sob o título “Os demônios estão soltos – sobre as ameaças do nosso tempo”, na qual Lúcia, especialista em Santa Tereza, lembra que esta mulher brilhante do século XVI, dizia: “O medo dos demônios escondia o medo de viver na confiança em Deus e de modo responsável”. Sim, SÉCULO XVI.
Jesus de Nazaré, em sua imensa sabedoria e conhecimento da condição humana, já identificava a astúcia dos filhos das trevas. Aqueles e aquelas que odeiam a luz. A ambiguidade humana que se revela no conceito de “pecado” da tradição judaico-cristã, mas não em concepção moralista, sim enquanto ações desumanizadoras que repercutem em toda natureza, reside em todas as pessoas. Jesus estava seguro disso: o mal não é o que entra, mas o que sai pela boca. Todos e todas podem ser “anjos” e “demônios” para os outros. E os piores são os “demônios religiosos”.
“Diabos/as religiosos/as” são lobos em pele de cordeiro, assim fica mais difícil identificar as reais intenções. Vestem-se com roupas de gala para se separarem (diabo em grego é aquele que divide) dos simples mortais, e nas trevas cometem verdadeiras atrocidades. Falam de família, pátria, Deus, mas suas vidas clandestinas são de arrepiar até mesmo o “inimigo”. São perigosos. Sim, podem fazer o mal, muitos deles perseguem sorrindo.
Então, diante de uma crise como a que estamos vivendo, eles empunham a bandeira da moral e dos bons costumes e induzem, diabolicamente, o povo a adorar o “bezerro de ouro”. Trocam o Messias do Amor pelo messias do ódio, e assim conseguem a manutenção de seu poder.
Os integralistas, inteligentes que são, sim o “Lucífer” é inteligente, desde o início do século passado, quando ganharam força em ideologias como o Nazismo e Fascismo, perceberam a necessidade de estimular o ódio, incluindo distorções religiosas, para reinarem com tranquilidade. De vez em quando eles são derrotados pelo amor, mas quando aparece o momento oportuno eles saem das tocas, com chifre e tridente nas mãos, escondidos evidentemente em discursos que fazem os incautos temer o novo, e aí podem matar pessoas como matam baratas. Carl Jung chegou a criar um conceito para isso: misoneismo, isto é, o medo daquilo que aponta para a necessidade de mudar, do novo. Lembremos: Jesus Cristo representou uma grande novidade. Volta e meia querem abafar tal realidade.
Sim, “coitado do demônio” e das pessoas simples que muitas vezes são colocadas como exemplo de possessão dos verdadeiros DEMÔNIOS. Um amigo ateu fez a seguinte observação: “Engraçado, nunca vi um ateu sendo exorcizado”. As “bruxas”, por exemplo, não eram ateias, mas mulheres que confrontaram o poder demoníaco patriarcal. Mia Couto acertou em cheio: “Há quem tenha medo que o medo acabe”, por isso, é preciso matar bruxas, bruxos, que nos fazem abrir os olhos para novos horizontes. “Bem aventurados os puros de coração, porque verão a Deus” (Mt 5,8).
Artigo de Celso Pinto Carias – assessor da Ampliada Nacional das CEBs. Este artigo foi publicado originalmente no Portal das CEBs.