No último final de semana, nos dias 27 e 28 de agosto, realizou-se em Boa Vista o Seminário Estadual Encantar a Política. O evento foi organizado pelas Pastorais Sociais da Diocese de Roraima, pela coordenação local do Conselho Nacional do Laicato do Brasil e pelo Centro Nacional de Fé e Política “Dom Helder Câmara” (CEFEP) que é uma iniciativa da Conferência Nacional dos Bispos do Brasil (CNBB).
O seminário reuniu 134 participantes representantes dos vários municípios do Estado, ligados às pastorais e movimentos sociais, além do convidado especial, o professor Daniel Seidel, mestre em Ciência Política pela UnB, assessor nacional da Rede Eclesial Panamazônica (REPAM), membro da comissão Brasileira de Justiça e Paz (CBJP/CNBB) e integrante da coordenação do CEFEP.
‘Encantar a Política’ é um projeto nacional, fruto do trabalho de uma rede de organizações, serviços, pastorais sociais e organismos da Igreja, Rede Brasileira de Fé e Política, que tem como objetivo “abrir os horizontes da Boa Política para mais gente da Igreja”. O projeto foi lançado em forma de Caderno Popular e encontra-se disponível para download gratuitamente neste link.
O projeto “retoma questões centrais das encíclicas do Papa Francisco que tratam a Política como decorrência ética do mandamento do amor, assumindo-a no sentido mais profundo da palavra. Busca aplicar os ensinamentos do Papa Francisco à nossa realidade atual. Destina-se especialmente a pessoas atuantes nas comunidades e paróquias, como animadoras e animadores de celebrações, catequistas, ministras e ministros da Palavra, participantes de grupos e movimentos, e agentes de pastoral em geral. Procura manter um estilo direto e dialogal, não citando outros textos além da palavra do Papa Francisco” (Caderno Encantar a Política – Introdução).
Mas, afinal, o que significa ‘encantar a política’ na Amazônia?
Esse debate é importante porque o projeto ‘Encantar a Política’ é uma proposta que se adequa e se adapta às distintas realidades e contextos nacionais. De acordo com o Dicionário da Língua Portuguesa (https://dicionario.priberam.org/encantar), encantar é verbo transitivo e significa “proceder ao encantamento de: tomar-se de encanto; maravilhar-se, extasiar-se”. No sentido figurado significa “maravilhar, seduzir, enlevar, agradar muito a”.
Na Amazônia, no imaginário popular, especialmente dos povos tradicionais, encantar significa passar do plano físico ao plano espiritual sem deixar, no entanto, a condição de “ser”. Assim, os “seres espirituais” convivem com os seres físicos e estão “interligados”.
Para o antropólogo Raymundo Heraldo Maués, professor emérito da Universidade Federal do Pará, “os encantados chamados também de Caruanas, são entidades espirituais que se manifestam principalmente na pajelança cabocla”. Também “são pessoas comuns que sem passar pelo processo de morte material de seu corpo, vão para um mundo espiritual, não o mundo dos espíritos da crença cristã, mas um mundo encantado subaquático ou lugares encantados, escondidos na floresta (MAUÉS, Raymundo Heraldo. Uma outra invenção da Amazônia: religiões, histórias, identidades. Belém: Cejup, 1999, p. 92).
Assim, o encantamento no imaginário amazônico é a transformação de algo físico e material em um ser encantado capaz de proteger as pessoas, os rios, as florestas e tudo que nelas habitam. Dessa forma, ‘encantar a política’ na Amazônia é uma forma de transcender a política para o campo das ideias, dos seres que protegem as pessoas, os rios, o lavrado e as florestas, e tudo que neles habitam.
Para os participantes do seminário “encantar a política” significa devolver à política a sua função de proteger o povo, de semear esperança, ou “esperançar” do verbo esperar em ação, como dizia o filósofo e educador Paulo Freire. Significa ainda, desmistificar a relação direta entre política e corrupção, há muito disseminada no Brasil e em outras partes do mundo. Significa retomar os espaços políticos como lugares de reflexão e de ação por um mundo melhor e com direitos garantidos para todos e todas.
No decorrer do seminário, uma faixa de 4 metros de comprimento foi estendida no centro do salão com a frase “fora garimpo! Fora invasores!”. Essa frase definiu uma tomada de posição muito clara, há muito assumida pelo seguimento desse seminário que concluiu que ‘encantar a política’ na Amazônia é devolver a terra sem males aos povos indígenas e às populações tradicionais livres do garimpo ilegal, do crime organizado e dos mercadores dos recursos naturais. No final do seminário, se definiu um posicionamento firme de votar em quem defende e protege a Amazônia e não entrega as florestas, rios e lavrados para quem promove sua contaminação, destruição e morte.
Outro compromisso assumido no final do seminário foi o de dar maior visibilidade às pessoas que contribuem para ‘encantar a política’ no sentido de garantir a participação ativa e efetiva dos/as representantes políticos que assumem a causa dos povos indígenas, das mulheres, da juventude e de todos aqueles e aquelas que se comprometem com o Bem viver, com a agricultura familiar e a agroecologia, com a acolhida e inclusão dos migrantes e refugiados, com o enfrentamento ao tráfico humano e com o fim do garimpo e da violência contra as mulheres e o abuso de crianças.
Por fim, o Seminário Estadual Encantar a Política foi um espaço de memória e planejamento estratégico das pastorais e movimentos sociais comprometidos com a vida em primeiro lugar. Assim, embalados/as pelos princípios da Semana Social Brasileira, do Grito dos Excluídos/as que questiona as comemorações do bicentenário e indaga “independência para quem?” os/as participantes do seminário assumiram o compromisso de multiplicar o debate nas suas bases e votar pela Amazônia.
Artigo publicado originalmente no site Amazonas Atual. *Marcia Oliveira é doutora em Sociedade e Cultura na Amazônia (UFAM), com pós-doutorado em Sociedade e Fronteiras (UFRR); mestre em Sociedade e Cultura na Amazônia, mestre em Gênero, Identidade e Cidadania (Universidad de Huelva – Espanha); Cientista Social, Licenciada em Sociologia (UFAM); pesquisadora do Grupo de Estudos Migratórios da Amazônia (UFAM); Pesquisadora do Grupo de Estudo Interdisciplinar sobre Fronteiras: Processos Sociais e Simbólicos (UFRR); Professora da Universidade Federal de Roraima (UFRR); pesquisadora do Observatório das Migrações em Rondônia (OBMIRO/UNIR). Assessora da Rede Eclesial Pan-Amazônica – REPAM/CNBB e da Cáritas Brasileira.